Relator: João Batista Góes Ulysséa
Tema(s): Destituição do poder familiar Vínculo afetivo mínimo ou até ausente
Tribunal TJSC
Data: 24/03/2015
(...) “A identificação da prática de atos que afrontem a moral e os bons costumes é aferida objetivamente, incluindo as condutas que o direito considera lícitas. Porém, não se pode subtrair a possibilidade de o juiz decidir pela exoneração por fatos que considere incompatíveis com o poder familiar, não se podendo falar em abuso de autoridade. Em qualquer circunstância, o supremo valor é o melhor interesse do menor. Como o afastamento do filho do convívio de um ou de ambos os pais certamente produz sequelas que podem comprometer seu desenvolvimento psicológico, recomendável que, ao ser decretada a suspensão ou perda do poder familiar, seja aplicada alguma medida protetiva de acompanhamento, apoio e orientação ao filho (ECA 100) e aos pais (ECA 129) (ob. cit. p. 388, grifo nosso).” (...)
Apelação Cível n. 2014.037703-8, de Gaspar
Relator: Des. João Batista Góes Ulysséa
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. RECURSO DO GENITOR.
CERCEAMENTO DE DEFESA. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PARA COMPARECIMENTO ÀS AUDIÊNCIAS CONCENTRADAS. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO INTERNO UTILIZADO PARA CONTROLAR E REAVALIAR OS ACOLHIMENTOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES. AUSÊNCIA DE PRODUÇÃO DE PROVAS. PRELIMINAR NÃO VERIFICADA. TESE RECHAÇADA.
As audiências de concentração são procedimentos internos, com a participação exclusiva dos atores do sistema de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, para reavaliar periodicamente a necessidade de manutenção da medida protetiva de acolhimento. Não se verifica cerceamento de defesa, pela ausência de comparecimento às referidas audiências, quando ausente a produção de provas ou qualquer outra deliberação que implique a necessidade do contraditório e da ampla defesa.
MÉRITO. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. GENITORES QUE ABANDONARAM O MENOR E O DEIXARAM VIVENDO COM OS AVÓS PATERNOS, EM DETRIMENTO DE MANTÊ-LO NO SEIO FAMILIAR COM SEUS NOVOS COMPANHEIROS E FILHOS. VÍNCULO AFETIVO MÍNIMO OU ATÉ AUSENTE. CRIANÇA QUE AOS SEIS ANOS DE IDADE PASSAVA OS DIAS FORA DE CASA, ABANDONADA À SUA PRÓPRIA SORTE, SEM QUALQUER SUPERVISÃO. SITUAÇÃO DE HIGIENE E SAÚDE PRECÁRIAS. FAMILIARES DESINTERESSADOS NA GUARDA. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.638, INCISOS II E III, DO CÓDIGO CIVIL. DESTITUIÇÃO DA AUTORIDADE PARENTAL QUE SE IMPÕE. DECISÃO MANTIDA.
A destituição do poder familiar é medida extrema, que deve ser aplicada quando verificada a impossibilidade de manutenção da autoridade parental com os genitores. Todavia, observado à luz do melhor interesse do infante que seus direitos estavam sendo negligenciados pelos pais, imperiosa torna-se a destituição do poder familiar destes, com o encaminhamento das crianças para família substituta, capaz de prover o afeto e cuidados necessários ao seu crescimento sadio.
Constatada a situação de abandono vivenciada pelo menor, apurada pela rede protetiva do Município desde os seus seis anos de idade, quando andava sozinho pelas ruas em condições precárias de higiene e saúde, sem qualquer supervisão de pessoa responsável, resta caracterizado o abandono afetivo, moral e material da criança. Ademais, o desinteresse dos genitores é patente em manter o filho sob sua guarda, visto que cada qual optou por seguir sua vida com as suas novas famílias, deixando o infante totalmente sem proteção.
PREQUESTIONAMENTO. DESNECESSIDADE DE APRECIAÇÃO MINUCIOSA DOS DISPOSITIVOS LEGAIS EXPOSTOS NO APELO.
Embora o Apelante não aponte os dispositivos lançados em prequestionamento, todos os pontos arguidos nas razões recursais foram analisados, direta ou indiretamente, no corpo do julgado.
PEDIDO DE AFASTAMENTO DA MULTA POR INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA PELO DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. NÃO CONHECIMENTO. MATÉRIA OBJETO DE RECURSO EM AUTOS ESPECÍFICOS. NÃO CONHECIMENTO.
RECURSO CONHECIDO EM PARTE, E NESTA, IMPROVIDO.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2014.037703-8, da comarca de Gaspar (1ª Vara), em que é apelante V. F., e apelado Ministério Público do Estado de Santa Catarina:
A Segunda Câmara de Direito Civil decidiu, por votação unânime, conhecer em parte do recurso e, nesta parte, negar-lhe provimento. Custas legais.
O julgamento realizado no dia 17 de julho de 2014, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Trindade dos Santos, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Gilberto Gomes de Oliveira.
Lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Mário Gemin.
Florianópolis, 22 de julho de 2014.
João Batista Góes Ulysséa
Relator
RELATÓRIO
V. F. interpôs recurso apelatório contra a sentença que, proferida nos autos da ação de destituição do poder familiar, proposta pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, julgou procedente o pedido formulado na peça inicial e determinou a destituição do seu poder familiar e de G. da F., em relação ao seu filho G. F.
Em suas razões, o Apelante alegou, preliminarmente, o cerceamento ao seu direito de defesa, por ausência de intimação para comparecimento nas audiências concentradas realizadas no curso da ação, ferindo seu direito ao contraditório e à ampla defesa.
No mérito, defendeu que: (a) jamais abandonou seu filho, somente o deixou com os avós paternos enquanto não detinha condições de manter a sua guarda; (b) no local onde reside, revela-se comum que as crianças brinquem na rua, de modo que tal costume não pode caracterizar abandono ou falta de responsabilidade; (c) a perda do poder familiar, por sua gravidade, somente pode ser decretada quando a manutenção se mostrar absolutamente impossível, o que não resultou comprovado no processo, sequer pelo depoimento testemunhal, porque as pessoas ouvidas em audiência não confirmaram com segurança a ocorrência dos fatos narrados na exordial; e, (d) não se encontram presentes concomitantemente todas as condições previstas pelo art. 1.638 do Código Civil para a decretação do poder familiar.
Requereu o provimento do recurso, com a anulação de todos os atos posteriores à primeira audiência que ocorreu sem a sua intimação, ou, sucessivamente, a reforma da decisão, com a manutenção do poder familiar e o afastamento da multa imposta. E, em caso de improvimento da apelação, pugnou pelo prequestionamento da matéria invocada.
Intimado, o Ministério Público de Santa Catarina apresentou contrarrazões e pugnou pelo improvimento do recurso.
A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Exmo. Sr. Dr. Mário Gemin, manifestou-se pela manutenção da sentença, nos termos das contrarrazões apresentadas.
É o relatório.
VOTO
Objetiva o Apelante a reforma da sentença que decretou a destituição do seu poder familiar em relação ao menor G. F., atualmente com oito anos de idade.
Inicialmente, cumpre analisar a preliminar de cerceamento de defesa, sob o fundamento de que a ausência de intimação para comparecimento nas audiências concentradas realizadas nos autos da ação de destituição de poder familiar feriram o seu direito ao contraditório e à ampla defesa.
A realização de audiências concentradas pelas Varas da Infância e Juventude dos Tribunais brasileiros foi uma iniciativa do I Encontro de Coordenadores da Infância e da Juventude, realizado em abril de 2010, e atendido pelo Conselho Nacional de Justiça, a fim de regularizar e controlar os acolhimentos institucionais e familiares de crianças e adolescentes abrigados nos termos do art. 19 do ECA, por intermédio da Instrução Normativa n. 02/2010 e reiterado pelo Ofício-circular n. 159/2012 deste Tribunal.
Trata-se de procedimento interno, com a participação exclusiva dos atores do sistema de garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes, para reavaliar periodicamente a necessidade de manutenção da medida protetiva de acolhimento. Assim, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina, ora Apelado, funciona como custos legis, fiscalizando a lei e defendendo os interesses infanto-juvenis. E o ato resultou amplamente explicado por ocasião da sentença, na qual o ilustre Magistrado sentenciante aduziu:
Ressalto tal premissa pois tais atos, de índole administrativa, não objetivam instruir as ações judiciais - tanto que não foram produzidas quaisquer provas - mas tão somente de prestar celeridade aos encaminhamentos necessários, observando a prioridade das demandas da infância e juventude, bem como a fiscalização por parte do Juízo quanto ao atendimento prestado pelo programa de acolhimento e seguimento das determinações do respectivo PIA. Tanto que em tais solenidades, onde se discutia a situação de todas as crianças e adolescentes acolhidos, contava-se apenas com a presença dos integrantes das equipes técnicas das três instituições de acolhimento (coordenadoras, pedagogas, assistentes sociais, psicólogas), além do representante do Ministério Público, desse Magistrado e equipe técnica forense (fl. 171).
Anota-se que as três primeiras audiências concentradas, realizadas em 28-5-2013 (fl. 36), 25-6-2013 (fl. 55) e 30-7-2013 (fl. 71), aconteceram anteriormente à entrada em vigor do Provimento n. 32/2013, que determina a intimação prévia dos pais ou parentes do acolhido, de modo que a última audiência concentrada, de 29-10-2013, contou com a presença do Procurador do Réu (fl. 148).
Assim, não se verifica qualquer nulidade.
Em casos idênticos, decidiu este Tribunal de Justiça:
APELAÇÃO CÍVEL. INFÂNCIA E JUVENTUDE. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM.
[...] (2) CERCEAMENTO DE DEFESA. AUDIÊNCIA CONCENTRADA. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO DEFENSOR. IRRELEVÂNCIA. ATO SEM PRODUÇÃO DE PROVAS. PUBLICIDADE DA PORTARIA QUE INSTITUI O ATO. NULIDADE NÃO VERIFICADA.
- Inexistente produção de provas em 'audiência concentrada', onde há apenas reunião entre Juiz, Promotor de Justiça, Conselho Tutelar e equipe multidisciplinar para discutir o encaminhamento de crianças e adolescentes abrigados, não há falar em cerceamento de defesa pela não participação do defensor, mormente quando a portaria que institui tal ato foi devidamente publicada e dá ciência aos interessados da sua realização em data e horários definidos.
[...] (Apelação Cível n. 2012.087934-7, de Canoinhas, rel. Des. Henry Petry Junior, j. 7-3-2013).
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. APELO DA GENITORA. PREFACIAIS. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA DECISÃO QUE SUSPENDEU O DIREITO DE VISITAÇÃO AO MENOR ACOLHIDO BEM COMO CONTRA A AUDIÊNCIA CONCENTRADA REALIZADA SEM A PRESENÇA DA PARTE ADVERSA, AMBAS DETERMINADAS APÓS A SENTENÇA. NULIDADE NÃO VERIFICADA, POIS A SUSPENSÃO DA VISITAÇÃO É COROLÁRIO LÓGICO DA DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR E A AUDIÊNCIA CONCENTRADA APENAS ATENDEU AOS COMANDOS DA CORREGEDORIA-GERAL DE JUSTIÇA DESTA CORTE E DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. MÉRITO. RELATOS DE DESCASO DA GENITORA EM RELAÇÃO AO INFANTE. PROVA TESTEMUNHAL QUE CORROBORA O DESPREPARO PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PARENTAL. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. NECESSIDADE DE SE RESGUARDAR OS INTERESSES DO MENOR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
A destituição do pátrio poder de um pai e/ou de uma mãe sobre seu filho é medida drástica e somente deve ser determinada em situações em que se verifique a negligência dos genitores para com seus filhos, por não fornecerem condições mínimas necessárias para o desenvolvimento afetivo, psicológico, moral, educacional e material a eles.
Comprovada a negligência perpetrada pela genitora no tocante às necessidades do filho menor, é de destituir seu poder familiar sobre ele. (Apelação Cível n. 2013.067217-9, de Lages, rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, j. 28-11-2013, grifou-se).
Por fim, vale adicionar que nas audiências concentradas realizadas sem a participação das partes não houve produção de provas ou outro procedimento em que a ausência dos Réus acarretasse violação ao contraditório ou à ampla defesa, devendo ser rechaçada a preliminar aventada.
No mérito, tem-se que o poder familiar - ou a autoridade parental - compreende uma série de deveres atribuídos aos pais a fim de proteger os interesses e direitos dos filhos menores de idade, com previsão no art. 1.634 do Código Civil:
Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Acerca da matéria, ensina Maria Berenice Dias:
A autoridade parental está impregnada de deveres não apenas no campo material, mas, principalmente, no campo existencial, devendo os pais satisfazer outras necessidades dos filhos, notadamente de índole afetiva. Para Waldyr Grisard, tentar definir poder familiar nada mais é do que tentar enfeixar o que compreende o conjunto de faculdades encomendadas aos pais, como instituição protetora da menoridade, com o fim de lograr o pleno desenvolvimento e a formação integral dos filhos, seja físico, mental, moral, espiritual ou socialmente. A autoridade parental é o veículo instrumentalizador de direitos fundamentais dos filhos, de modo a conduzi-los à autonomia responsável (Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 378).
Da mesma forma é o entendimento de Rolf Madaleno:
Como dever prioritário e fundamental, devem os genitores antes de tudo, assistir seus filhos, no mais amplo e integral exercício de proteção, não apenas em sua função alimentar, mas mantê-los sob a sua guarda, segurança e companhia, e zelar por sua integridade moral e psíquica, e lhes conferir todo o suporte necessário para conduzi-los ao completo desenvolvimento e independência, devendo-lhes os filhos a necessária obediência (Curso de Direito de Família. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. p. 658).
Assim, verificado o descumprimento dos deveres descritos no art. 1.634, do Código Civil, ou, a ocorrência de algum dos casos previstos no art. 1.638, do mesmo Diploma, poderá o Estado, em defesa dos direitos do menor, suspender ou até extinguir o poder familiar de um ou de ambos os genitores.
Ressalte-se, desde logo, que não se faz necessário que todos os casos previstos pelo art. 1.638, do CC estejam presentes para o deferimento da medida, bastando apenas que fique demonstrada a ocorrência de uma das situações daquele dispositivo.
No caso em exame, propôs o Ministério Público procedimento para apuração de infração administrativa, autuado sob o n. 025.11.001395-0, a fim de verificar a ocorrência do descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar em relação ao menor G. F., à época com cinco anos de idade, apontando a situação de risco, negligência e irresponsabilidade vivenciada pelo infante em razão do total descaso e descuido por parte dos genitores, com base nos estudos elaborados pelo Conselho Tutelar do Município de Ilhota (fls. 7/9 da Apelação Cível n. 2014.037704-5), pelo Centro de Educação "V. J.", então freqüentado pelo menor (fls. 10/11 da apelação cível n. 2014.037704-5), e pela Secretaria Municipal da Assistência Social daquele Município (fls. 13/14 da Apelação Cível n. 2014.037704-5, em apenso).
Os relatórios indicam que, após a separação dos genitores do menor, quando G. F. tinha apenas dois anos de idade, o menino inicialmente ficou sob os cuidados do pai, quando então foram feitas diversas denúncias de maus tratos e negligência, além de ausência de imposição de limites e descuido com a sua educação. Ressaltam, ainda, o descomprometimento do genitor, que nega todas as situações de risco em que se encontra o filho, e o descaso da mãe, que prefere o acolhimento do menor a ter que se responsabilizar com a sua guarda.
Intimados os Demandados ainda naqueles autos, somente o Apelante apresentou defesa, alegando que G. F. é "fruto de uma relação conflituosa, de um meio familiar desestruturado" (fl. 30 dos autos da Apelação Cível n. 2014.037704-5) e que passou a viver sob os cuidados dos avós paternos, que proporcionam o melhor para o infante. Afirmou que tem ciência de que o menor necessita de mais atenção e cuidados, e comprometeu-se a realizar mais atividades com o filho e a atender as orientações dos profissionais do Conselho (fls. 29/33 da Apelação Cível n. 2014.037704-5).
Procedido Estudo Social (fls. 44/52 do caderno processual da Apelação Cível n. 2014.037704-5), verificou-se que o menor vive com os avós paternos desde que o genitor foi morar com o filho mais novo, a atual companheira e os filhos desta. Questionado sobre ter novamente a guarda do filho, V. F. disse que teria que deixar G. sozinho durante as tardes e que a atual companheira não concordava com a permanência da criança. Em respostas contraditórias, disse, inclusive, que "tentaria matriculá-lo no período vespertino e que ficaria com o filho e que caso a esposa não quisesse G., pediria a separação para viver sozinho, cuidando dele" (fl. 47 da Apelação Cível n. 2014.037704-5).
A instituição de ensino por ele freqüentada apontou um comportamento complicado, com falta de atenção às atividades, descuido com materiais e dificuldade de se relacionar com os colegas, apesar de tratar de menino muito carinhoso e carente.
Embora contatada e agendada entrevista com a genitora Ré, G. da F. não compareceu e não justificou a sua ausência, evidenciando seu total descaso com o filho.
Durante o estudo, os tios maternos de G., D. G. e C. A. da F. G. sustentaram que "G. [a mãe] não cuidava dos filhos, era negligente. As crianças permanecem na rua, principalmente G. [o menor], que ainda passa o dia na rua, em meio ao trânsito" (fl. 50 da Apelação Cível n. 2014.037704-5). Contaram que embora esteja sob os cuidados da avó paterna, a situação de desleixo subsiste.
Diante desse cenário, aconselhou-se o acolhimento institucional como o mais adequado para proteção do menor, conforme se infere da conclusão do parecer profissional:
Depreende-se do presente estudo social que o infante G. vem sendo tratado de forma negligente. [...].G., por vezes, foi e é deixado a própria sorte. Quando o encontramos pela primeira vez, estava longe de casa. Este fato nos confirmava os relatos do Conselho Tutelar, de que G. está sempre na rua. Segundo o mesmo órgão, G. já dormiu na casa de vizinhos, sem que ao menos a família soubesse onde ele estava. Simplesmente não sentiram a sua falta e se sentiram não foram procurá-lo. G., com apenas seis anos, apresenta problemas de incontinência fecal, sem ter sido verificada a causa. No relato da escola, G. é carente de afetividade e de atenção. Facilmente vulnerável e influenciável, ou seja, pode ser incitado por qualquer pessoa a fazer qualquer coisa. [...]. Em nossas intervenções com o pai, o alertamos sobre a situação de vulnerabilidade e risco pelos quais o filho estava passando. Conversamos sobre a possível guarda de G. por ele ou ainda a matrícula de G. no turno vespertino, o que poderia amenizar a situação de vivência na rua. Sobre levá-lo pra casa, alegou que teria que deixar G. sozinho na casa. Alegou ainda que a companheira não aceitaria a criança, o que já fora tentado antes, fato que, pelos relatos da escola e do conselho tutelar, quando a companheira tentou educar G., foi-lhe tirada a autoridade. [...] Tampouco, a avó paterna possui condições de cuidar da criança, de dar-lhe a atenção e suporte de que necessita, enquanto pessoa em desenvolvimento. Possui a saúde debilitada e não é possível que a ela esteja sendo imposto este encargo. Além disto, não está preocupada se a criança permanece na rua e até que horas. G. Possui apenas seis anos e terá seu futuro comprometido caso permaneça da maneira que se encontra (fls. 51/52 da Apelação Cível n. 2014.037704-5, sem grifos no original).
Determinado o acolhimento institucional do menor G.F., nos termos dos arts. 98, inciso II, e 101, inciso VII, do Estatuto da Criança e do Adolescente (fls. 75/78 da Apelação Cível n. 2014.037704-5), foi procedida a sua busca e apreensão em 5-9-2012 (fl. 85 da Apelação Cível n. 2014.037704-5) e acolhimento na Casa Lar Sementes do Amanhã (fl. 86 da Apelação Cível n. 2014.037704-5), onde chegou com "roupas muito sujas, com bastante pediculose e com muita fome" (fl. 76).
Ato contínuo, foi juntado aos autos relatório circunstanciado elaborado pela equipe do Abrigo Casa Lar (fls. 75/88), descrevendo a chegada e o desenvolvimento psíquico e educacional da criança na instituição de acolhimento, abordando temas como educação, saúde e sociabilização, no qual segue destacada a profícua integração do menor com os colegas nas atividades curriculares e extracurriculares, além de dificuldade de compreensão de regras e limites. Extrai-se do referido documento:
No início do acolhimento, identificamos que regras e limites nunca foram impostos para G., uma vez que o mesmo tinha o entendimento que poderia fazer o que quisesse, conforme a sua vontade. No entanto, após orientação, ele teve uma ótima adaptação às regras e dinâmicas impostas pela casa.
[...]. Nesse sentido, foi possível constatar que o mesmo tem baixa auto-estima, pois no seu entendimento, sua mãe não gosta dele e não deseja que ele conviva e resida com ela. Já seu pai, Sr. V., convive com a Sra. E. e com o seu irmão L. K. G. entende que, em função de sua madrasta, ele também não pode morar com eles.
[...].
Na instituição, G. tem recebido orientações referentes às questões disciplinares e o cuidado consigo mesmo e com os seus pertences. Diante disso, tem apresentado melhoras diariamente, o que deixa claro a negligência que havia em relação aos cuidados com a criança em questão (fls. 76/77 e 84, destacou-se).
Acerca do desapreço demonstrado pelos Réus, ressalta-se os seguintes trechos do relatório, nos quais, quando contatados acerca do acolhimento, sequer questionam as condições em que o menor se encontra:
Ainda neste mesmo dia [6-9-2012], G. (mãe de G.) ligou para saber como deveria proceder em relação ao acolhimento de seu filho. [...]. Importante ressaltar que G. não perguntou nada referente ao seu filho (fl. 77).
Importante destacar que, durante o atendimento psicossocial realizado com Sr. V., percebemos um discurso totalmente autoritário. O mesmo demonstrava resistência em aceitar as diversas denúncias referentes à família. Foi possível identificar que V., além de não aceitar, também não compreende que não estava desempenhando sua função protetiva em relação ao filho e que, por conta disso, G. estava tendo seus direitos violados e em situação de risco (fl. 79, grifou-se).
Importante salientar que é evidente, através do discurso de G., a falta de desejo/interesse e de vínculo de afeto e afinidade em relação ao filho G. Quando questionada sobre o futuro de seu filho, a mesma relata que não sabe o que é melhor para ele.
[...].
Importante destacar que, em nenhum momento durante o atendimento, G. Perguntou algo referente ao seu filho (fl. 79, destacou-se).
[...] Sra. M. [avó paterna do menor] relatou que sempre ficou responsável pelos cuidados de G., pois a mãe da criança (G.) nunca mostrou interesse/desejo em assumir a responsabilidade do filho, em relação ao seu filho V., M. relatou que o mesmo não assume os cuidados de G., pois sua atual esposa não o aceita. [...] Sr. N. [avô paterno do menor] relatou que entende ser mais benéfico e saudável para G. se o mesmo continuar na instituição de acolhimento, pois somente assim está protegido, com regras e limites, não tendo possibilidade de ir pra rua (fls. 80/81, sem grifo no original).
A conclusão do relatório não poderia ser mais óbvia. Diante de todo o descaso da família pelo menor G. F., a sua situação de completo abandono e os sinais de que vive em melhores condições quando distante dos genitores, a sugestão foi de destituição do poder familiar em relação ao infante. Destacam-se as seguintes passagens da análise psicossocial elaborada pelas profissionais:
Importante salientar também que, Sr. V., não reconhece suas fragilidades e nem o contexto de risco em que G. estava inserido, pois, até o momento, não realizou nenhum movimento efetivo para mudar a situação. Ao contrário, pois a dinâmica de V. continua a mesma. O mesmo permanece por horas, diariamente, nos bares, onde faz uso de bebida alcoólica, sendo, muitas vezes, uso abusivo. Percebemos ainda o desinteresse de V. em relação a situação emocional de seu filho, que até a presente data entrou em contato com esta instituição apenas duas vezes. Como já citado acima, quando Sr. V. ligou pela primeira vez, perguntando se "O malandro do meu filho está aprontando muito aí dentro?" [sic] conta uma relação de total desprezo.
Em relação a mãe de G., esta equipe técnica identificou, através das intervenções realizadas, que G. [a mãe] não possui desejo e nem interesse em assumir a guarda e responsabilidade do filho, pois em todos os contatos que esta equipe teve com a mesma, em nenhum momento esta solicitou informações de como o filho G. se encontrava na instituição. Destaca-se ainda que G. relatou que nunca possuiu vínculo de afeto e afinidade com G.
[...].
Ressaltamos ainda que, tanto os pais (V. e G.) quanto os avós paternos (Sr. N. e Sra. M.) possuem o discurso de que G. não obedece ninguém e do quanto é difícil conseguir impor limites à criança. No entanto, estudiosos na área de educação infantil afirmam que é dever dos pais e/ou responsáveis imporem limites para os seus filhos, para que estes aprendam a respeitar-se e a respeitar aos outros, ter uma boa convivência com colegas e familiares, tolerar frustrações, enfim, para que a criança tenha um ótimo desenvolvimento biopsicossocial (fls. 86/87, grifos nossos).
Deferida a suspensão do poder familiar e mantido o acolhimento (fls. 8/12), foi determinada a formação destes autos e intimados os Demandados (fl. 16), sendo que V. F. contestou o feito intempestivamente (fls. 20/23) e G. da F. se manteve inerte (fl. 29), sendo decretada a revelia de ambos e designada audiência de instrução e julgamento para o dia 26-8-2013 (fls. 30/31).
Nesse ínterim, inclusive foi requerida a suspensão das visitas dos genitores ao menor, porque entendidas pela equipe técnica da instituição como maléficas ao seu desenvolvimento (fls. 48/50), o que resultou acolhido pela decisão de fl. 56 e reiterado pelo laudo psicológico elaborado pela Psicóloga Forense às fls. 53/70. Nesta última análise, assim concluiu o estudo:
Em avaliação psicológica tanto o Sr. V. F. como a Sra. G. da F. mostram-se com dificuldades em perceber as reais necessidades do menino G.F.
[...]. G. menciona a agitação do menino e em várias circunstâncias exime-se da responsabilidade como mãe, entendendo que seu papel seja transferível aos demais.
V. mostra-se bem articulado, mesmo com diminuta instrução, entretanto há extrema dificuldade na percepção do filho G. A encoprese constante, os comportamentos inadaptados (envolvimento com furtos/ comportamentos hostis/ agitação/ demasiada autonomia para uma criança com apenas oito anos de idade), dificuldades de aprendizagem, assim as condutas do menino foram agravando-se no decorrer do tempo, sendo que o genitor mantinha-se alheio, eximindo a criança, e mostrando-se desatento ao amparo e educação do referido. Há uma percepção falha das necessidades do infante (necessidades de medicação, atenção, afeto, auxílio escolar), que mostraram-se ainda mais urgentes, isto em função da disjunção da união do casal e a consequente instabilidade de residência do infante.
Há de se salientar que G. não se mostra como prioridade dos genitores. Em seus discursos, ainda que relatem vínculo e cuidados, ambos deram diminuta relevância a sintomatologia do menino.
V. cita vinculação com a criança, entretanto priorizou a união com E., desta maneira a avó paterna exercia os cuidados para com o menino.
[...].
Durante o processo de avaliação, percebe-se o quão superficialmente G. se mostra vinculado com as figuras parentais primárias, sem identificação prioritária com os genitores. Cita duas mães (por seus respectivos nomes), e ao ser indagado sobre a figura paterna, menciona o educador do abrigo e o genitor, referindo-se ao mesmo pelo apelido. Nos desenhos escreve "V" (educador), demonstrando afeto e vínculo afetivo.
[...].
Percebe-se que não há sofrimento psíquico em função da ausência do Sr. V. e da Sra. G. O que se quer enfatizar é que a distância dos parentais primários não produz efeitos negativos, pois a vinculação já se mostrava fragilizada anteriormente ao abrigamento.
[...].
Alia-se a diminuta vinculação o fato de G. não se sentir pertinente às duas famílias, não se ajustando na família do genitor, tão pouco na da genitora, isto posto pelas condutas do Sr. V. e da Sra. G. que priorizaram suas vidas e a constituição de novas famílias, sem a efetiva inclusão do infante (fls. 66/68, destaque nosso).
Durante a audiência de instrução e julgamento (fl. 101), foram ouvidas testemunhas que, de modo geral, ratificaram a situação de risco e negligência em que vivia a criança antes do abrigamento, destacando o comportamento autoritário dos familiares que não visualizavam a sua responsabilidade no crescimento de G., mas o comportamento problemático do menor que justificava o distanciamento de familiares e a dificuldade de impor limites e regras que acarretavam a situação de risco, repita-se, não assumida pela família (depoimento de C. de S. M. C. - 21:00, fl. 108).
Em contrapartida, as pessoas indicadas pelo Réu V., ouvidas apenas como informantes em razão do grau de parentesco, não foram claras ao prestar informações quanto ao crescimento e desenvolvimento de G. ou às supostas tentativas de visita ao filho pelo genitor. Inclusive, os depoimentos de J. S. e R. S. V. são contraditórios entre si, quando, enquanto J. S. afirma que jamais se dirigiu à instituição onde G. se encontra acolhido, R. S. V., que era responsável por levar V. nos dias em que tentou realizar a visita, contou que sua mãe, J. S., esteve presente com V. em uma das oportunidades (12:48, fl. 106 e 10:00, fl. 107).
Em seu depoimento pessoal, também colhido em audiência (fl. 102), o Réu sequer sabia a idade do filho à época. Admitiu que tinha muito pouco contato com a criança, embora passasse todos os dias pela manhã na casa de sua genitora, a fim de encontrar o menor (03:40), e que este passava muito tempo sozinho longe de casa (04:20). Ainda, confessou que mesmo sabendo que G. tinha quase sido atropelado uma vez, deixou o menor morando com a sua mãe, que possui idade avançada (05:00). Questionado se alguma vez havia exercido o papel de pai, V. respondeu que sim, porém não soube informar quando (10:00). Apenas reiterou que o menino era muito carente, que deveria ter dado mais atenção a ele, e que agora está pagando o preço.
Da análise do depoimento do Réu/Apelante, como das demais peças em que o genitor defendeu exercer o poder familiar sobre a criança, percebe-se que ele nunca se responsabilizou pelo menor, apenas o entregou para que a avó paterna cuidasse e, sempre que era noticiado de que o infante passava por dificuldade, buscava resolver o problema retirando-o da creche ou não retornando às consultas com terapeuta.
Assim, em que pese as inúmeras alegações do Réu - de que presta os cuidados necessários ao menor -, em todos os momentos em que lhe foi oportunizado oferecer melhores condições de desenvolvimento a G. F., o genitor não cumpriu com os seus deveres e se manteve inerte, sendo responsável, juntamente com a genitora, pela perpetuação da situação de abandono vivenciada pela criança.
A violência psicológica sofrida por G. enquanto estava sob a guarda do genitor e da avó paterna é evidente quando se percebe a alteração de comportamento demonstrada pelo menor após sua integração à entidade de acolhimento. Inclusive, a equipe técnica do Abrigo Casa Lar reiterou que o menor jamais faz menção às figuras do pai e da mãe.
Na verdade, dos autos se extrai que a criança não encontrou, durante o tempo em que permaneceu no seio da família natural, um ambiente de socialização saudável, permeado por relações de afeto, confiança, segurança, educação e cuidado com sua saúde e sua formação moral. Ora, por mais que, atualmente, a sociedade brasileira esteja acostumada com famílias que se distanciam do perfil tradicional, com formações e valores muito diferentes entre si e que, por isso, devem ser respeitadas e protegidas pelo Estado, na forma do artigo 226 da Constituição Federal, por atribuir ao Poder Público o dever de amparar toda entidade familiar, é certo que ao menos um elemento distintivo deve ser observado por todas as famílias, para que sejam colocadas sob o manto da juridicidade: "a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidades de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo" (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 42).
Continua Maria Berenice Dias, na obra supracitada:
É necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo-se buscar o elemento que permite enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que autorize nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado no vínculo que une seus integrantes. É o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional - cujo núcleo é a vontade - para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos. Esse é o divisor entre o direito obrigacional e o familiar: os negócios têm por substrato exclusivamente a vontade, enquanto o traço diferenciador do direito da família é o afeto. A família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas (op. cit., p. 43 - grifamos).
No caso, são vários os elementos que demonstram o descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar pelos Réus em relação ao menor G. F., como: (a) o desinteresse em ter o filho sob a sua guarda, quer na família da genitora, quer juntamente com o genitor, de modo que os pais formaram novas famílias a partir da separação e não se interessaram em conduzir G. para o seio familiar, apesar da existência de irmãos em idades parecidas; (b) o descuido diário com a saúde e a segurança de G., que caminhava sozinho pelas ruas desde os cinco anos de idade, sem qualquer supervisão de um responsável, sendo que, inclusive, passou a noite longe de casa sem que sua falta fosse notada pelos progenitores paternos, com quem ele residiam; e, (c) a inércia em oferecer ao infante uma melhor qualidade de desenvolvimento, desobedecendo orientações das conselheiras tutelares e inadmitindo o constante descuido com o menor.
Diante desse cenário, forçoso reconhecer que não há, neste caso, uma verdadeira família a ser preservada, porque inexistente o vínculo de afeto capaz de "gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos", nas palavras de Maria Berenice Dias.
Assim, considerando todos os elementos até aqui expostos, há de se reconhecer que, infelizmente, o Apelante - assim como G. da F. - não dispõem de condições para exercer o poder familiar sobre seu filho menor e cumprir seus deveres de pai, na forma do artigo 1.634 do Código Civil.
Sobre as hipóteses de perda ou suspensão do poder familiar trazidas pelo art. 1.638 do Código Civil em seus incisos II e III, quais sejam, abandono e prática de atos contrários à moral, leciona Carlos Roberto Gonçalves:
II - Deixar o filho em abandono. [...].O abandono priva o filho desse direito [à convivência familiar e comunitária], além de prejudicá-lo em diversos sentidos. A falta de assistência material coloca em risco a sua saúde e sobrevivência, mas não constitui a única forma de abandono. Este pode ser também moral e intelectual, quando importa em descaso com a educação e moralidade do infante. [...].
III - Praticar atos contrários à moral e aos bons costumes. Visa o legislador evitar que o mau exemplo dos pais prejudique a formação moral dos infantes. O lar é uma escola onde se forma a personalidade dos filhos. Sendo eles facilmente influenciáveis, devem os pais manter uma postura digna e honrada, para que nela se amolde o caráter daqueles. [...].
Mas o dispositivo em tela tem uma amplitude maior, abrangendo o procedimento moral e social sob diversos aspectos. Assim, o alcoolismo, a vadiagem, a mendicância, o uso de substâncias entorpecentes, a prática da prostituição e muitas outras condutas antissociais se incluem na expressão "atos contrários à moral e aos bons costumes". (Direito Civil Brasileiro. v. 6. 9ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p. 429/430 - grifamos).
Neste ponto, importante colacionar lição de Rolf Madaleno, que entende:
[...] ser o lar a primeira escola dos filhos e onde eles formam a sua personalidade, devendo os pais ter todo o cuidado e a inquestionável obrigação de manter uma postura digna e honrada, na qual a sua prole irá se espelhar, pois das atitudes dos genitores os filhos tiram os seus primeiros exemplos, bastando a convivência para o bom ou mau aprendizado.
Assim, o uso imoderado de bebidas alcóolicas, ou de drogas e entorpecentes, os abusos físicos ou sexuais e as agressões morais e pessoais para com os filhos, parceiro ou cônjuge, ou mesmo para com terceiros, são mostras nefastas de uma prática condenável e de nenhuma contribuição para a sadia formação do sujeito criado em ambiente desintegrado, disfuncional, depravado ou de reprovável comportamento, a vulnerar a integridade moral e psíquica da prole (Curso de Direito de Família. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 671, sem grifos no original).
Maria Berenice Dias, no mesmo sentido, manifesta-se:
A identificação da prática de atos que afrontem a moral e os bons costumes é aferida objetivamente, incluindo as condutas que o direito considera lícitas. Porém, não se pode subtrair a possibilidade de o juiz decidir pela exoneração por fatos que considere incompatíveis com o poder familiar, não se podendo falar em abuso de autoridade. Em qualquer circunstância, o supremo valor é o melhor interesse do menor. Como o afastamento do filho do convívio de um ou de ambos os pais certamente produz sequelas que podem comprometer seu desenvolvimento psicológico, recomendável que, ao ser decretada a suspensão ou perda do poder familiar, seja aplicada alguma medida protetiva de acompanhamento, apoio e orientação ao filho (ECA 100) e aos pais (ECA 129) (ob. cit. p. 388, grifo nosso).
No caso, diante dos fatos narrados na peça inicial, dos documentos juntados aos autos, dos depoimentos prestados em juízo e dos estudos psicossociais realizados com a criança e seus pais, mostra-se imperativa a destituição do poder familiar dos genitores V. F. e G. da F., a fim de proteger os interesses do infante G. F. que, antes de ser institucionalizado, estava sendo privado de grande parte dos seus direitos, convivendo em um ambiente sem afeto e segurança, negligente com educação e saúde e de total abandono, comprometendo o seu desenvolvimento moral e psicossocial.
A manutenção do poder familiar segue condicionada aos interesses do menor. Por consequência, inconciliável que, pelo exame do caso e com as provas demonstrando abandono material, moral, social e afetivo por parte dos pais em relação ao filho, não sejam destituídos do poder familiar.
Nesse sentido, já decidiu este Tribunal de Justiça:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. INSURGÊNCIA EXCLUSIVA DO GENITOR. ABANDONO E DESCASO EM RELAÇÃO AO FILHO MENOR. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE EVIDENCIA O DESPREPARO PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PARENTAL. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. NECESSIDADE DE SE RESGUARDAR OS INTERESSES DA CRIANÇA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
A destituição do pátrio poder de um pai e/ou de uma mãe sobre seu filho é medida drástica e somente deve ser determinada em situações em que se verifique a negligência dos genitores para com seus filhos, por não fornecerem condições mínimas necessárias para o desenvolvimento afetivo, psicológico, moral, educacional e material a eles.
Comprovados o descaso e o abandono perpetrados pelos genitores no tocante aos cuidados com o filho menor, é de destituir o poder familiar sobre ele. (Apelação Cível n. 2013.076688-5, de Indaial, rel. Des. Jairo Fernandes Gonçalves, j. 5-12-2013, sem grifo no original).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. RECURSO DA RÉ. [...].
ALMEJADA A MANUTENÇÃO DO PODER FAMILIAR. IMPOSSIBILIDADE. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A AUSÊNCIA DE CONDIÇÕES MÍNIMAS PARA O EXERCÍCIO DA MATERNIDADE. ATITUDE NEGLIGENTE DA MÃE AO DEIXAR A INFANTE NOS PERÍODOS DIURNO E NOTURNO SOZINHA, SEM SUPERVISÃO DE QUALQUER RESPONSÁVEL. CRIANÇA CUIDADA E ALIMENTADA, CORRIQUEIRAMENTE, POR VIZINHOS. AUSÊNCIA DE VÍNCULO AFETIVO E PROTETIVO. ABANDONO MORAL E MATERIAL EVIDENCIADOS. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
[...].
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (Apelação Cível n. 2013.068812-7, da Capital, rel. Des. Gerson Cherem II, j. 3-4-2014, destacou-se).
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. PAIS BIOLÓGICOS. EXPOSIÇÃO DOS FILHOS À SITUAÇÃO DE NEGLIGÊNCIA E ABANDONO MORAL. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL DOS MENORES. FARTO ACERVO PROBATÓRIO. RELATÓRIOS ELABORADOS PERIODICAMENTE PELA CASA LAR. ESTUDO SOCIAL FORMALIZADO PELA ASSISTÊNCIA SOCIAL FORENSE. DOCUMENTOS POSITIVOS À DESTITUIÇÃO. TUTELA ESTATAL DEFERIDA. PRESERVAÇÃO DO BEM-ESTAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. GARANTIA DE UMA VIDA DIGNA E LIVRE DE RISCOS PARA O DESENVOLVIMENTO FÍSICO E MENTAL. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com a mais absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e, especialmente, à convivência familiar, ainda que em família substituta, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Nesse contexto de total proteção aos interesses da criança, é que se defere a medida extrema de destituição do poder familiar. (Apelação Cível n. 2014.013141-8, de Joinville, rel. Des. Fernando Carioni, j. 8-4-2014).
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - PERDA DO PODER FAMILIAR PELOS PAIS - PROCEDÊNCIA EM PRIMEIRO GRAU - INCONFORMISMO EXCLUSIVO DA GENITORA - AUSÊNCIA DE CAUSA AUTORIZADORA DE DESTITUIÇÃO - INACOLHIMENTO - ABANDONO MORAL E MATERIAL CARACTERIZADOS - DESCASO QUE GEROU O ENFRAQUECIMENTO DO VÍNCULO AFETIVO MATERNO-FILIAL - OMISSÃO DO NÚCLEO FAMILIAR MATERNO E PATERNO - POSTURA PASSIVA DA GENITORA - INCAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DO PODER FAMILIAR - PERDA DO PODER FAMILIAR MANTIDA - PROVIMENTO NEGADO.
Caracterizada a negligência familiar e materna em relação ao desenvolvimento afetivo, físico e psíquico dos menores e não implementadas alterações nas condições de vida da genitora a evidenciar a sua capacidade para o exercício da autoridade parental, impõe-se-lhe a perda do poder familiar, a teor do disposto no art. 1.638, inciso II, do Código Civil. (Apelação Cível n. 2014.002910-6, da Capital, rel. Des. Monteiro Rocha, j. 5-6-2014, grifou-se).
Finalmente, o fato de não ter sido realizado um estudo com todos os parentes extensos dos Réus, a fim de manter a guarda de G. dentro da família, não significa que não foi tentado pela equipe técnica de conselheiras tutelares, assistentes sociais e psicólogas uma aproximação com alguns tios e tias do menor. Todavia, infrutíferas as tentativas e percebida a fraqueza - e quase ausência - de vínculos de G. com os familiares biológicos, entendeu-se que a busca por uma família substituta onde se pudesse criar novos laços de afeto alcançaria os melhores interesses da criança. Nesse sentido, extrai-se do termo de audiência concentrada de fl. 148, da qual, inclusive, participaram o Apelante e o seu Procurador:
[...]. Consignaram que houve busca pela família extensa, inclusive uma tia que já possui a guarda de um irmão de G., a qual não manifestou interesse em tê-lo sob seus cuidados. [...].
Outrossim, deve-se destacar excertos da brilhante sentença da lavra do Magistrado Raphael de Oliveira e Silva Borges que, com maestria, ponderou a questão debatida nos autos (fls. 173/189):
As provas existentes nos autos deixam claro a omissão do demandado com os deveres de cuidado do filho, que diferentemente do alegado pela defesa, não pode ser comparado com outros menores da comunidade, já que pode ser considerado normal crianças brincarem na rua, porém passarem o dia inteiro fora de casa, perambulando pela localidade, sem que os responsáveis saibam o seu paradeiro e, ainda, em horários noturnos impróprios para infantes de tão pouca idade, não podem ser considerado normais, porquanto tais fatos se constituem, sem dúvida alguma, em comportamento negligente e desidioso com os deveres inerentes ao poder familiar.
A desídia da ré, por outro lado, é inequívoca e decorre tanto do teor das declarações prestadas às profissionais da instituição de acolhimento e deste Juizado da Infância e Juventude, quanto da ausência de resposta aos presentes processos e do comparecimento na audiência de instrução, apesar de regularmente intimada.
Do contexto dos autos é possível, portanto, extrair que o menino G. F. foi vítima de abandono e negligência dos pais, os quais, ao porem fim a relação conjugal, passaram a tratá-lo como refugo de um relacionamento amoroso fracassado, isto, quando ele contava com apenas três anos de idade e foi colocado aos cuidados da avó paterna, uma senhora idosa que não possui condições de atendê-lo nas mínimas necessidades essenciais. Em seguida, cada qual dos réus refez sua vida, constituiu uma nova família, mas nenhum se preocupou em acolher e inserir o filho nesse novo núcleo.
G. viveu em abandono material e afetivo.
[...].
O menino foi rejeitado por ambos os pais, viu que cada um deles arranjou um novo (a) companheiro (a), teve outros filhos, a quem era dado a atenção necessária, tinham uma nova casa, mas nenhum lembrou de buscar ele, de cuidar dele - que estava lá, com apenas quatro, cinco, seis anos de idade.
[...].
A criança é sujeito e não objeto de direitos. O poder familiar a ser exercido pelos pais é um 'munus' que importa no dever de bem guardar e educar um filho.
[...].
As provas documentais e orais produzidas em ambos os autos demonstram que a criança (na época com apenas seis anos de idade) estava abandonada a própria sorte, vivia nas ruas até altas horas da noite, sem referência, ia para a creche com a mesma roupa por vários dias (mesmo com o problema da encoprese), pedia comida na casa de vizinhos, dormia fora de casa sem que a avó e o pai sequer notassem sua ausência.
[...].
Ocorre que uma criança com seis anos de idade precisa de MUITO carinho, cuidado, atenção - exige cuidados diários, constantes e vigilância permanente. Necessita de alguém que diariamente a alimente, vista, dê banho, auxilie nas tarefas e a coloque dormir, no horário regular que as crianças de seis anos devem dormir - isso é ser pai isso é ser mãe! Isso é o mínimo!
Uma criança de seis anos precisa que os pais estejam presentes, lhes respondam as dúvidas do mundo, participem dessa descoberta, lhe indiquem o certo e o errado, os limites, apontem os perigos. Não se pode reputar normal que um menino de seis anos fique sozinho nas ruas, em meio ao trânsito, de dia e de noite, faça Sol ou tempestade, exposto a diversos riscos - ele ainda é uma criança, um pessoa em desenvolvimento, que precisa ser orientado. Isso não é normal!
Assim, por fartos elementos probatórios demonstrando a ocorrência das hipóteses justificadoras da destituição do poder familiar (art. 1.638 do CC), e sendo essa a única medida possível para garantir o melhor interesse do menor, nega-se provimento ao recurso, mantendo incólume a bem lançada sentença, com vistas a destituir V. F. e G. da F. da autoridade parental em relação à criança G.F.
O Apelante, por fim, requer o prequestionamento da matéria suscitada ao longo do reclamo. Porém, desnecessário se torna o debate dos normativos citados, sendo suficiente que o julgador explicite os motivos de seu convencimento à solução da lide. Aliás, no momento em que o Magistrado, de forma fundamentada, adota determinado posicionamento acerca de uma matéria, rejeita implicitamente as demais arguições.
Nesse sentido:
É sabido que o juiz não está adstrito aos fundamentos de direito levantados pelas partes, nem está obrigado a manifestar-se expressamente sobre todos eles quando se soluciona a lide sob motivação diversa da defendida pelos litigantes. (Embargos de Declaração em Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2006.021435-3/0001.00, da Capital, Segunda Câmara de Direito Público, rel. Des. Cid Goulart, j. 05-12-2006).
Consoante remansosa jurisprudência, o julgador não está obrigado a manifestar-se sobre todos os pontos levantados pelas partes desde que, de modo devidamente fundamentado, demonstre as razões de seu convencimento. (Apelação Cível n. 2006.008240-2, da Capital, Primeira Câmara de Direito Civil, rel. Des. Joel Figueira Júnior, j. 22-10-2009).
E, do Superior Tribunal de Justiça:
Para que se tenha por configurado o pressuposto do pré-questionamento é bastante que o tribunal de origem haja debatido e decidido a questão federal controvertida, não se exigindo que haja expressa menção ao dispositivo legal pretensamente violado no especial (Embargos em Recurso Especial n. 198.413/AL, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, DJU de 8-4-2002).
Ademais, não se conhece do pedido de afastamento da multa por infração administrativa, decorrente do descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, porque objeto da Apelação Cível n. 2014.037704-5.
Diante de todo o exposto, conhece-se em parte do recurso para, nesta parte, negar-lhe provimento.
É o voto.
Gabinete Des. João Batista Góes Ulysséa
Disponível na Jurisprudência do IBDFAM, do Dia 24 de Março de 2015