20 de November de 2014
Divórcio. Partilha de bens. Cotas sociais. Transferência ilícita

AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1.145.058-1, DA 4ª VARA DE FAMÍLIA DO FORO CENTRAL DA COMARCA DA REGIÃO METROPOLITANA DE CURITIBA AGRAVANTE : I.C.P.K. AGRAVADA : J.A.F. RELATORA : DES.ª IVANISE MARIA TRATZ MARTINS PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DIVÓRCIO C/C PARTILHA DE BENS. PRETENSÃO DE PARTILHA DE COTAS SOCIAIS QUE TERIAM SIDO ILICITAMENTE TRANSFERIDAS À AGRAVANTE COM O INTUITO DE FRAUDAR A MEAÇÃO DA AGRAVADA. MAGISTRADO QUE DETERMINOU A EMENDA À INICIAL PARA INCLUIR A AGRAVANTE E A PESSOA JURÍDICA NO POLO PASSIVO DA DEMANDA. POSSIBILIDADE, NESSE CASO. HIPÓTESE QUE AUTORIZA, SE PREENCHIDOS OS REQUISITOS, A DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. NECESSIDADE DE ASSEGURAR A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO DA PESSOA JURÍDICA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Agravo de Instrumento nº 1.145.058-1 em que é Agravante I.C.P.K. e é Agravada J.A.F. I ¬ RELATÓRIO Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por I.C.P.K. em face de J.A.F., impugnando decisão de fls. 65-70/TJ, que em Ação Divórcio c/c Partilha de Bens, determinou a inclusão da Agravante no polo passivo da lide. Irresignada, a Ré, ora Agravante, interpôs o presente recurso de Agravo de Instrumento no qual alegou, em síntese, que não possui legitimidade passiva para atuar no feito e nem mesmo interesse; que a ação de divórcio diz respeito exclusivamente aos cônjuges e nela não cabe nenhuma das formas de intervenção de terceiros, mesmo considerando o debate sobre as cotas sociais de sua empresa. Requereu a atribuição de efeito suspensivo ao processo e, no mérito, a reforma da decisão agravada. Por meio da decisão liminar de fls. 95-99 foi indeferido o pedido de atribuição de efeito suspensivo e determinado o processamento do recurso. Informações prestadas pelo magistrado singular às fls. 105. Decorrido o prazo legal sem manifestação da parte agravada, conforme certificado às fls. 106. Parecer da d. Procuradoria Geral de Justiça às fls. 110-11 pela desnecessidade de intervenção ministerial. É o relatório. II ¬ FUNDAMENTAÇÃO Presentes os pressupostos intrínsecos e extrínsecos de admissibilidade recursal, impõe-se conhecer do recurso de agravo de instrumento. Observa-se dos autos que a Agravada foi casada com D.R.K., tendo dele se separado em maio de 2008, oportunidade na qual dissolveram o casamento por Escritura Pública de Separação Consensual. Visando a decretação de seu divórcio e a partilha de bens, a Agravada ajuizou a presente ação, em que pleiteia, dentre outros pedidos, pela partilha das cotas sociais da empresa Carmelo Transportes e Comércio de Artigos de Decoração Ltda, as quais teriam sido transferidas de forma fraudulenta pelo seu ex-marido à Agravante apenas dois dias antes da separação do casal. O magistrado singular, entendendo ser possível discussão sobre a fraude na cessão das cotas e eventual desconsideração da personalidade jurídica, determinou a emenda à inicial para fins de incluir no polo passivo da ação a ora Agravante e a pessoa jurídica Carmelo Transportes e Comércio de Artigos de Decoração Ltda ¬ sendo esta a decisão agravada. Entendo que a decisão não merece reforma. A condição da ação da legitimidade das partes configura-se na necessidade de se verificar se as partes ¬ Autor e Réu ¬ possuem uma relação jurídica compatível com o direito material pleiteado. Acerca da legitimidade das partes, melhores as palavras de Luiz Guilherme Marinoni1: "A legitimidade para a causa, também apontada como condição da ação, vem disciplinada, em princípio, pelo art. 6º do CPC, que afirma que `ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei'. Isto quer dizer, em princípio, que somente tem legitimidade para a causa, na qualidade de autor, aquele que se diz titular do direito material, podendo ser réu apenas aquele que, no plano do direito material, tem a obrigação correspondente ao direito material afirmado na petição inicial". No caso dos autos, a pretensão inicial visa a decretação do divórcio da Agravada e de D.R.K., e a partilha de bens decorrente do fim desta união. Quanto a partilha de bens, pretende a Agravada obter a partilha de cotas sociais da empresa da qual o seu ex- marido era sócio e que teriam sido ilicitamente transferidas à Agravante, que se tornou a única sócia do empreendimento, o que teria sido feito com a finalidade de malferir o direito da Agravada na obtenção de sua cota parte com a partilha das cotas sociais. Em casos como o presente, a doutrina autoriza a aplicação da doutrina da disregard, possibilitando a desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa, conforme merece destaque: "O Código Civil prevê expressamente a teoria da desconsideração da pessoa jurídica (CC 50), que consiste na possibilidade de ignorar a personalidade jurídica sempre que for reconhecido desvio de finalidade e assim fazer com que bens da empresa respondam por dívidas dos sócios. Seguindo orientação doutrinária, o instituto passou a ser utilizado no direito das famílias, na tentativa de coibir indevida vantagem patrimonial do consorte empresário em detrimento de outro, por ocasião da dissolução da sociedade conjugal. Não raro, pressentindo o cônjuge ou companheiro a falência do casamento ou da união estável, aproveita-se para registrar bens e imóveis em nome da empresa da qual participa. Furtivo o sócio, à sombra do véu da pessoa jurídica, infortuna o patrimônio conjugal, ou resiste às obrigações alimentares. Por vezes, ocorre a retirada fictícia do cônjuge da sociedade. Ele, em conluio com terceiro, venda a sua parte na empresa, a fim de afastar da partilha as quotas sociais ou o patrimônio do casal já revertido ao ente societário. Também ocorre a dissolução da sociedade, com o mesmo fim de esconder o patrimônio partilhável. Ainda que a alteração contratual, idealizada para privar o cônjuge ou o convivente do exercício de seus direitos sobre os bens comunicáveis, seja perfeito quanto ao seu fundo e à sua forma, mesmo assim o ato é ineficaz com respeito ao consorte lesado. Tais posturas admitem o que se chama de despersonalização inversa ou invertida: a desconsideração da personalidade jurídica com o fim de buscar os bens que estão em nome da própria empresa, quando esta se tornou mera extensão física do sócio, o qual pouco, ou quase nada, tem em seu nome. Essa possibilidade serve tanto para proceder-se a partilha de bens como para assegurar a execução de alimentos."2 Imperioso concluir, portanto, que sendo possível desconsiderar a personalidade jurídica da empresa para possibilitar a partilha de bens, imperioso garantir à pessoa jurídica e sua sócia, ora Agravante, o respeito ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa, o que foi assegurado nos autos na decisão agravada, que determinou o seu ingresso à lide. Importa colacionar a jurisprudência desta Corte que se manifesta pela possibilidade de aplicação da teoria do disregard nas ações de divórcio, sendo desnecessário o ajuizamento de ação própria, desde que seja respeitado o direito de defesa da pessoa jurídica: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL C/C PARTILHA DE BENS. POSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA MESMA DEMANDA, DE FORMA INCIDENTAL. DESNECESSIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO AUTÔNOMA. COMPETÊNCIA DA VARA DE FAMÍLIA. RECURSO PROVIDO. (...) Nesse tocante, é de se observar que a distinção entre a personalidade jurídica da empresa e a dos sócios que a constituem pode, de fato, servir de anteparo à fraude da meação, eis que não é difícil imaginar situações em que um dos cônjuges, com o intuito de manter parte maior do patrimônio do que efetivamente lhe seria de direito, transfere, aliena a terceiros, ou, ainda, coloca em nome da pessoa jurídica, bens que em tese seriam do casal. Por isso passou-se a aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma inversa para, analisando o patrimônio da sociedade, identificar eventuais bens adquiridos pela pessoa jurídica de forma fraudulenta ou com intuito de prejudicar o cônjuge não integrante da sociedade, e devolvê-los ao monte partilhável. Para a análise deste pedido de desconsideração é desnecessário o ajuizamento de ação própria contra a sociedade, uma vez que a questão pode ser resolvida incidentalmente, desde que oportunizado o direito de defesa aos demais sócios e à sociedade. (TJPR - 11ª C.Cível - AI - 857191-5 - Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Fernando Wolff Bodziak - Unânime - - J. 16.05.2012) Não se olvida a doutrina e jurisprudência que entende que a ação de divórcio é uma demanda de caráter pessoal, o que impossibilitaria a inclusão de terceiros estranhos à relação conjugal na lide. Contudo, no caso dos autos, tendo a magistrada singular vislumbrado a possibilidade de a sentença atingir a esfera jurídica da empresa (desconsideração da personalidade jurídica), imperioso garantir a sua permanência na lide com o fim de resguardar seus próprios interesses, tal como já fundamentado. Se, eventualmente, for verificado algum tumulto processual pela permanência dos Agravantes no polo passivo da lide, caberá à magistrada singular, condutora do processo, verificar acerca da necessidade de remeter a discussão acerca da legalidade na transferência das cotas sociais para autos próprios. Cumpre destacar, ademais, que a discussão nos próprios autos de divorcio acerca da legalidade na transferência de cotas sociais pelo consorte e ocorrência ou não de frauda à meação da Agravada privilegia o princípio da economia processual, pelo que a medida não pode ser de plano afastada. Pelo exposto, deve ser mantida a decisão agravada. - Prequestionamento Conforme a fundamentação supra, tem-se por prequestionados os dispositivos legais apontados no recurso, que tenham expressa ou implicitamente pertinência com as questões examinadas no julgamento. III ¬ VOTO Pelo exposto, o voto é pelo conhecimento e desprovimento do recurso, mantendo a decisão agravada em sua integralidade. IV ¬ DISPOSITIVO ACORDAM, os integrantes da Décima Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em conhecer e negar provimento ao recurso, nos termos do voto e sua fundamentação. O julgamento foi presidido por esta Relatora (com voto) e dele participaram a Excelentíssima Desembargadora Denise Kruger Pereira e o Excelentíssimo Desembargador Luiz Cezar Nicolau. Curitiba, 23 de julho de 2014. DESª IVANISE MARIA TRATZ MARTINS RELATORA -- 2 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. P. 340-341.